A questão da autodeterminação da identidade de género está outra vez na ordem do dia e, por isso, este é o momento ideal para dar espaço aqui no blog a uma reflexão que a Vanessa Pereira, psicóloga de formação, partilhou comigo e que gostava de vos dar a conhecer. Então, e se ela não quiser escolher um nome marcadamente masculino ou feminino para a sua criança?
Nos EUA, por exemplo, os nomes unissexo têm cada vez mais mais adeptos [para ser mais exacta, os nomes masculinos usam-se cada vez mais em meninas e há nomes que antigamente se usavam exclusivamente em meninos e que, agora, se usam predominantemente em meninas], mas cá isso não acontece e as leis em vigor também não dão grande margem de manobra. Já abordamos o tema neste post, por exemplo, mas a Vanessa sugere a leitura de um trabalho de Ana Cristina Santos e Ana Lúcia Santos, intitulado "O nome que não ousa dizer da intimidade: um estudo exploratório sobre nomeação" - se tiverem um tempinho livre, leiam mesmo, está estupendo! Sendo um pouco extenso, a Vanessa fez um resumo livre do
mesmo, retirando excertos e destacando as ideias que lhe parecem centrais:
«O nome é um elemento central da apresentação do eu na vida de todos os dias. (…) Transporta consigo expectativas sociais que comportam elementos tão diversos quanto a nacionalidade, o género, a origem étnica, herança religiosa ou a classe social».
Se atendermos ao género, que é o que importa para o
caso, o Código de Registo Civil (CRC) português refere claramente que os nomes
não podem suscitar dúvidas em termos de género, o que vem reforçar uma concepção
binária (e polarizada – acrescento eu) em torno do termo “género” e claramente
associada ao sexo com que uma pessoa nasce. Assim, excluímos do direito à autoidentificação as
pessoas que se situam num género que não (só) o feminino ou (só) o masculino,
por exemplo, pessoas de género fluído ou neutro.
A política portuguesa de atribuição de nome, ao
determinar que o nome não deva suscitar dúvidas quanto ao sexo da pessoa,
«torna-se numa ferramenta do regime sexo-género dominante, que se caracteriza
pela conformidade ao sexo» com que se nasce.
Mesmo quando se pode optar por um nome composto de dois
vocábulos, um “feminino” e outro “masculino”, o primeiro deve ser o marcador do
género. E, então, claramente se identifica um menino João Maria ou uma menina
Maria João. Por conseguinte, não avançamos aqui. Tudo permanece igual, ou seja,
o nome subordinado a uma característica biológica.
Com isto presente, facilmente compreendemos que nomear
uma pessoa por aquilo que ela não é pode constituir-se como um ato de
violência.
Na verdade, os seres humanos são «vulneráveis
perante a linguagem, como se ela tivesse capacidade de ação sobre nós e isto
acontece porque somos seres formados nela. A primeira ferida linguística é o
ato de nomeação, isto é, dar nome às coisas ou aos seres. Este torna-se um
evento traumático porque ocorre contra a vontade do sujeito», precede a sua
vontade. «É um ato recebido passivamente, mas indispensável para se obter
reconhecimento social, poder ser diferenciado/a de outras pessoas e obter
direitos de cidadania».
Não sendo escolhido pelo indivíduo, o nome pode, por
exemplo, enquadrar alguém numa religião que não professa ou, no caso que
debatemos, num género que não corresponde à sua identidade.
Surge então, a primeira pergunta:
Se uma família não quiser “marcar” uma criança com um
género binário – masculino ou feminino – , optando por não condicionar a sua
identidade de género pelo sexo com que nasceu e pelo nome que a lei “obriga” a
que seja associado a esse sexo, que opções de nomes “neutros” ou “não-binários” é
que poderá ter?
E mais:
Se os nomes próprios não devem suscitar «dúvidas quanto
ao sexo do registando» (art.º 103,º do CRC de 1995), que nome atribuir a
uma criança nascida intersexo?
A nova proposta de lei da identidade de género prevê que
não se realizem (excepto quando necessários por questões de saúde) procedimentos
cirúrgicos e outros a crianças que nasçam com características sexuais
masculinas e femininas. Ora, se o sexo não é um ou outro, mas um
terceiro, como fica a questão do nome que, persistentemente, assenta no
modelo binário de género, e não contempla outras existências, outras
identidades?
O tema é complexo e tenho medo de meter os pés pelas mãos com os conceitos, mas neste momento, vou tentar dar resposta a esta primeira questão: que nomes actualmente admitidos em Portugal poderiam ser considerados neutros? Tendo em conta que, até ao momento, os nomes estão mesmo divididos por género na lista oficial, e tendo por base aquilo que diz a lei, estes são os nomes que podem ser registados nos dois géneros:
- Adama
- Aléxis, Alexis
- Álison
- Ami
- Amrit
- Andrea
- Angel
- Ariel
- Arsh
- Ary
- Ashley
- Ayan
- Bhavnoor
- Bryan
- Carlos
- Charlie
- Cheng
- Cheok
- Chi
- Destiny
- Dione
- Eden
- Elia
- Elioenai
- Elsa
- Ezra
- Fábio
- Fateh
- Gael
- Gianny
- Hargun
- Harjot
- Harkirat
- Harnoor
- Harper
- Heer
- Hinal
- Hoi
- Ian
- Iat
- Jasmim
- Joaquim
- José
- Juno
- Ka
- Kai
- Kaylen
- Kellen
- Kenzi
- Kiamy
- Kiany
- Kiesse
- Laurent
- Lenin
- Lia
- Lok
- Lucca, Luka
- Luís
- Lyan
- Mamadou
- Man
- Manel
- Mel
- Michell
- Nadir
- Nicol
- Nihal
- Nikita
- Noa
- Noah
- Otchali
- Rafa
- Raul
- Raven
- Rayane
- Reece
- Rio
- Rubi, Ruby
- Sacha, Sasha
- Sáli
- Sam
- Si
- Sónia
- Soraia
- Stéphane
- Sukhmeet
- Sury
- Umaro
- Victória
- Vivian
- Weng
- Wyatt
- Yacine
- Yani, Yanni
- Yu
- Zoé
Destaquei a negrito os que me parecem mais usáveis.
Acho que esta lista explicita bem o problema com que os pais se deparariam: tem vários nomes que, apesar de admitidos nos dois géneros, me remetem claramente para um deles e que até me levam a pensar que possam estar na lista oficial por lapso. Tem nomes que poucos cidadãos portugueses saberiam ler ou escrever; nomes que pertencem a outras culturas. E tem nomes que parecem mais adequados para personagens do que para crianças reais.
Estendendo a pesquisa às listas antigas de nomes aprovados em Portugal, encontramos seis nomes com indicação de que podem ser usados nos dois géneros:
- Gileade
- Indra
- Guimar
- Salma [está na lista atual de nomes femininos]
- Santana
- Rosário [está na lista atual de nomes femininos]
E nessas listas anteriores, há ainda alguns nomes sem indicação de género e que acho que poderiam funcionar como unissexo:
- Amável
- Bérnia
- Chema
- Dagmar
- Florença
- Ione
- Liberdade
- Zola & Cris, que eram apenas admitidos como segundo nome
Esquecendo agora a determinação pré-estabelecida pelo IRN para cada nome, e sublinhando a ideia de que é extremamente difícil olhar para os nomes mais comuns em Portugal sem o associar a um género específico, gostava de deixar algumas sugestões de nomes potencialmente unissexo:
- Abril
- Amal
- Anis
- Azaria
- Azul
- Benny
- Carmo
- Carmim
- Dakota
- Elis
- Fénix
- Gabi
- Goa
- Jael
- Juli
- Kenzi
- Leny
- Lisbon
- Loide
- Lou
- Lumi
- Madu
- Mali
- Maré
- Mor
- Muriel
- Nael
- Nené
- Nola
- Nuri
- Paris
- Remi
- Romy
- Rey
- Sari
- Sky
- Suriel
Se precisarem de consultar a lista do IRN para perceber que género lhes está atribuído, é porque provavelmente poderiam passar mesmo por unissexo!
Post muito interessante, Filipa! Acho que a questão dos nomes e do género ainda vai dar que falar, se bem que a língua portuguesa não é muito favorável a um terceiro genéro. Os nomes indicados parecem-me quase todos ainda muito “estranhos”. Há poucas opções que não façam de um nome unissexo algo esquisito. Ainda assim, acho que há alguma potencialidade em nomes ligados à natureza, como o Maré ou o Rubi que indicou. Até porque muitos nomes literais da natureza são novidades (por exemplo Concha) e por isso têm menos estereótipos associados, acho eu. Lótus parece-me uma boa opção! Outras possibilidades (não aprovadas, acho) são Mar, Silvestre e Sol. Agora não encontrei mais, mas também não procurei com muito afinco. Enfim, este é um assunto muito pertinente!
ResponderEliminarObrigada por expor este tema tão interessante.
ResponderEliminarJá considerei este problema e como os nomes unissexo não me agradam, a minha solução ficou-se pelos diminutivos/alcunhas. Afinal, este últimos são tão importantes como os nomes e, muitas vezes, são aqueles com que nós nos identificamos e, para todos os efeitos excepto os oficiais, são a nossa identidade para aqueles que nos rodeiam.
Proponho algo como fez o filho da cantora Cher: recebeu o nome Chastity e alterou o nome para o seu diminutivo Chaz.
Estes são diminutivos "unissexo". Assim, a criança teria uma identidade asociada com o diminutivo e, se mais tarde precisasse de alterar o nome, o processo passaria "apenas" por alterar/adicionar/retirar letras, mas a mudança do nome oficial não seria drástica.
Alex, Sasha - Alexandre, Alexandra
Toni - António, Antónia (embora remeta mais para o masculino)
Cris - Cristiano, Cristiana
Dani - Daniel, Daniela
Edu - Eduardo, Eduarda
Fred, Freddie - Frederico, Frederica
Gabi - Gabriel, Gabriela
Lu - Luís, Luísa
Manu - Manuel, Manuela
Rafa - Rafael, Rafaela
Vic - Victor, Victória
Existem outros exemplos, estes que exigem mais do que mudar o nome para a sua versão oposta, mas cujos diminutivos são unissexo.
Gui - Guilherme, Guiomar
Isa - Isaac, Isabel, Isadora... (embora remeta mais para o feminino)
Ju, Jó e similares - João, Joana, José, Jorge...
Léo, Leo - Leonardo, Leonor
Mat - Matias, Matilde, Mateus...
Micas - Miguel, Micaela
Claro, esta solução não é o que muitos procuram, um nome oficialmente unissexo. Todavia, tendo em conta o panorama corrente da nossa lei e as nossas opções "unissexo", é uma solução pragmática.
Conheço uma menina Suíça chamada Juno. Para mim não consigo associar o nome a uma menina, pois remete me sempre para um menino devido a sua terminação (o).
ResponderEliminarAdicionava Jade e Kelly também
ResponderEliminarUm dia verei Juno como nome masculino. Até lá é uma deusa. Falando em deusas, Ártemis, funciona ok em um menino - temos a série de livros Artemis Fowl para comprovar.
ResponderEliminarCompartilho os nomes de minhas tias como opções unissexo - Lóide e Adair.
Gosto de Isa como apelido de Isidoro, mas recentemente descobri que Isa -por si só- é um nome árabe que se refere a Jesus.
Acho este um tópico muito interessante e que merece ser discutido. Parabéns pela iniciativa!
ResponderEliminarEu gostava imenso de dar um nome unissexo ao meu futuro rebento. Gosto bastante de “Hariel” (sim com “H”, como o anjo), mas o meu marido não é muito fã. Pessoalmente, adoro nomes compridos e sonantes (como Henrique, Guilherme, Francisco/Francisca, Benedita…).
A questão do “nome unissexo” é relevante, precisamente, por questões de género. Mesmo sendo uma mulher heterossexual apoio o movimento LGBTIA+, até porque grande parte dos meus amigos têm identidades sexuais e de género fora da heterossexualidade. Deste modo, a questão de um filho ou filha poder vir a ser trans (ou seja, não nascer no corpo da sua identidade de género) é-me algo próximo e um nome unissexo poderia resolver-lhe muitos conflitos. Contudo, uma pessoa nunca sabe o dia de amanhã, não é mesmo? E se o meu filho sempre se sentir homem ou a minha filha sempre se sentir mulher? A verdade é que os nomes unissexo são pouco comuns e não sei até que ponto seriam os favoritos das próprias crianças. Apesar de adorar “Hariel” (e ter conhecido um menino aqui há uns anos com esse nome), brincadeiras com o nome do detergente e da Pequena Sereia seriam quase óbvias.
Olá! Estou grávida e deparo-me precisamente com este problema. Ainda não decidimos se queremos saber o sexo do bebé, e gostariamos sem dúvida de escolher um nome neutro, independentemente do que nos calhar na rifa :) O que acha de Gaia ou Duda? Quanto mais penso neles, mais os vejo para os 2 sexos, mas se entretanto a lista de nomes permitidos para ambos os géneros não foi actualizada, não nos safamos.. Dessa lista, exluindo os que claramente apontam para 1 dos generos, o único que não desgosto é Juno. Estamos inclinados para escolher um nome cujo diminutivo seja neutro, tipo Fred, ou outros tal como um anónimo sugeriu neste post, mas não deixa de ser frustrante esta limitação.
ResponderEliminarParabéns pelo blog, estou viciada a ler imensos posts antigos :)